Skip to main content
notícias

Entrevista Fábio Joseph Murad – BRPergunta: Estado gera inundação de ações sobre pandemia no STF?

By 17/04/2020janeiro 6th, 2022No Comments15 min read

O Supremo Tribunal Federal (STF) já acumula mais de 900 processos relacionados à pandemia do coronavírus até esta segunda-feira, 13. As ações sobre medidas que afetam o direito dos trabalhadores, situação do sistema carcerário e contribuição tributária, alguns dos exemplos mais recorrentes de demandas que a Corte Suprema tem do que analisar por conta da pandemia, compõem uma estatistica que ratifica a previsão de especialistas do direito de que o novo coronavírus traria grande judicialização. Para o advogado Fábio Joseph Murad, do escritório Moura Tavares, Figueiredo, Moreira e Campos Advogados, a demora e a publicação parcelada pelo governo de medidas que regulamentam as situações extraordinárias, contratos e suspensões no período da pandemia são o principal causador da grande quantidade de processos. Ao BR Político, o advogado tributarista debate o que levou a esse cenário e seus desdobramentos.

 

O STF informa que até hoje, dia 13, havia 928 processos ligados à pandemia na Corte, com 636 decisões. Como interpretar esse quadro?

Realmente é um número muito alto de demandas judiciais em um período curto de tempo. Contudo, não se pode restringir a análise ao número absoluto. Na verdade, o “acesso à jusça” e a existência de um terceiro imparcial são duas das principais características do Estado Democrático de Direito. No Brasil, esse terceiro, por excelência, é o Judiciário, por mais que a mediação e arbitragem venham crescendo nos últimos anos. Então a existência de processos não é um problema, pelo contrário, resguarda direitos. Diante disso, ao se analisar números dessa natureza (quantidade de processos e /ou atos judiciais), deve-se perquirir o que deu ensejo às demandas, avaliando-se, então, se não está ocorrendo o que o doutrinador brasileiro Kazuo Watanabe cunhou de litigiosidade exacerbada, ou seja, se considera apenas o Judiciário como forma de dirimir os conflitos sociais. Esclarecido isso, entendo que, neste caso, estamos sim diante de um pico exemplo dessa litigiosidade exacerbada, há, no meu entender, uma excessiva judicialização das demandas relacionadas ao novo coronavírus. É notório que a atual pandemia afeta as mais variadas relações sociais: locador/locatário, contratante/contratado, empregador/empregado, Fisco/contribuinte, o que exige uma revisão, adaptação dessas relações à excepcionalidade atual. Tal adequação poderia ser realizada com respaldo da proporcionalidade e da razoabilidade, notadamente nas relações entre particulares. Já nas relações que envolvem ente público, a publicação ágil a satisfatória de portarias, por exemplo, poderia diminuir consideravelmente o número de processos. Neste ponto, e, mais uma vez citado o professor Kazuo Watanabe, penso que o Estado está sendo o grande “gerador de conflitos”, já que neste particular, principalmente o Executivo Federal (mas sem eximir os demais entes da federação) agiu tardiamente, editando portarias incompletas, imprecisas e de questionável constitucionalidade, a resposta governamental ao coronavírus, também não se dá de forma técnica, ao o que impinge na procura ao Judiciário como única forma de resguardar direitos, é a chamada judicialização de demandas.

 

O que vem a ser Observatório Nacional sobre Questões Ambientais, Econômicas e Sociais de Alta Complexidade e Grande Impacto e Repercussão e no que consistem esses dados divulgados pelo STF?

 O Observatório decorre de uma iniciava do Conselho Nacional do Ministério Público e do Conselho Nacional de Justiça, tendo sido instituído em janeiro de 2019 para aperfeiçoar a atuação das entidades diante de ocorrências de grande porte. Decorreu de demandas de repercussão nacional com grande número de envolvidos com a justificava de se dar uma satisfação à sociedade das demandas que envolvem aquele assunto. O caso do desastre em Mariana teve esse tratamento. O Observatório também fez o levantamento do caso da boate Kiss. No final de março de 2020, via portaria 57, os casos do coronavírus também passaram a ser monitorados por ele e aí se tem o levantamento das ações em todo o território nacional que envolvem a pandemia.

 

Como se avalia o volume de ações de habeas corpus, que é o maior nas demandas relacionadas à covid-19?

Defendo que, para se avaliar a questão dos habeas corpus, deve-se ponderar, primeiramente, as caraterísticas do direito penal e do sistema carcerário brasileiro. Nesse ponto, em resumo, me filio à corrente defendida por grande parte dos defensores públicos, advogados penalistas e juízes, para quem no Brasil “se prende muito e se prende mal”. O próprio STF reconheceu que o sistema carcerário brasileiro por si só é inconstitucional na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 347, pois, devido à superlotação, há uma constante violação dos direitos dos detentos. No cenário atual, de pandemia, os detentos ficam ainda mais vulneráveis, o sistema fica ainda mais precário. Então os advogados e defensores públicos que atuam na área tomam as medidas no intuito de, sem exagero ou demagogia, proteger a vida e a dignidade dos detentos. A situação é tão critica que o próprio Comitê Nacional de Combate à Tortura manifestou preocupação com o sistema penitenciário nacional. Também neste ponto, acho importante mencionar que o posicionamento do Estado, notadamente do Ministério da Justiça, implica na judicialização de demandas, haja vista que se posiciona de forma contrária à orientação do CNJ, se opondo, pois, à liberação excepcional e especifica de detentos que estão em prisão preventivas e que são acusados de cometerem crimes sem violência ou grave ameaça.

 

Em relação às demais demandas, o que justificaria esse número elevado?

Entendo que todas as demandas estão ligadas à falta de resposta ou posicionamento tardio e ou insuficiente dado pelo governo. Em demandas tributárias, por exemplo, as ações, portarias e medidas provisórias, foram tomadas de forma gradativas. As primeiras medidas, por exemplo, se limitaram a prorrogar o pagamento do FGTS e dos tributos federais que compõem o Simples Nacional. Como isso não afetava todos os contribuintes, foram aforadas diversas ações pleiteando o adiamento do pagamento de outros tributos. Até a presente data, alguns tributos ainda não foram abordados nas medidas já tomadas. Então, por exemplo, o contribuinte que pretende adiar o pagamento do IRPJ e da CSLL ainda precisam recorrer ao Judiciário para ter garantido este direito. Exemplo relacionado à não sastisfatoriedade das medidas implementadas diz respeito à questão da renda mínima emergencial, haja vista que foi necessária a propositura de uma Ação Direta de Inconstucionalidade por Omissão, a ADO nº. 56, que visa regulamentar como vai se dar essa garantia. As portarias relacionadas à matéria trabalhista são bons exemplos de medidas de questionável constucionalidade, haja vista que a flexibilização dos direitos dos empregados é objeto de Ações Diretas de Inconstucionalidade, dentre as quais destaco a ADI 6363. Embora todos esses exemplos ilustrem bem a falta de técnica da atuação governamental, o que, ao meu ver, é a principal justificava da elevada judicialização, acho válido citar que o STF foi instado a se manifestar acerca da prorrogação da prova do Enem. Ou seja, uma situação que seria facilmente resolvida via portaria do Ministério da Educação provocou uma decisão da Corte Suprema. Ou seja, está havendo o que se conhece como uso alternativo do direito, já que, diante da falta de normativos e posicionamentos das autoridades competentes recorre-se ao Judiciário.

 

Podemos dar mais exemplos de onde o Judiciário age quando há omissão do Estado?

Na área tributária, em que eu atuo, há um exemplo muito claro recente. Por meio da portaria 139, de 3 de abril, houve prorrogação do prazo da contribuição previdenciária que incide sobre a folha de salário, mas ela não abordou outros tributos de natureza muito parecida, como a Contribuição Previdenciária de Receita Bruta, e a contribuição do produtor rural e da agroindústria. A portaria que regulamenta a prorrogação desses tributos foi publicada apenas 4 dias depois. Por mais que esse tempo possa parecer curto, existiram diversas ações desses empregadores pleiteando o reconhecimento do direito de também prorrogar. Esses dois exemplos mostram que a doutrina chama de uso alternativo do direito. Já que não tem uma medida judicial, eu recorro ao Judiciário para ter uma garantia do direito, que é uma situação que gera muita preocupação para os operadores do direito e estudiosos. Entendo que não é o papel do Judiciário fazer essa função, ele não tem essa competência. Essa é uma situação temerária, pois os freios e contrapesos dos Três Poderes ficam comprometidos.

 

Qual é a análise que o sr. faz das normas jurídicas até agora lançadas nesta pandemia pelo Judiciário e Executivo?

Considerando que poderiam ter sido tomadas antes, de forma mais clara, completa, respeitando os ditames da Constituição, acho que foram medidas necessárias. Na questão tributária, atende à demanda da maioria dos contribuintes, que, é, ao prorrogar o pagamento do tributo, gerar um caixa para que ele possa arcar com as despesas mais urgentes e indispensáveis. Na questão administrava também foi necessária, pois diante de uma urgência, eu preciso que a resposta estatal seja mais rápida. Um processo licitatório no Brasil em média dura 60 dias e o Estado não pode esperar esse tempo para contratar um prestador de serviço para atender às demandas da saúde. Por isso houve uma flexibilização em que em alguns casos não se exige a regularidade fiscal da empresa contratada. No entanto é preciso tomar cuidado, pois mesmo que a medida seja uma exceção, só para contratos exigidos pelo coronavírus com validade de 6 meses, deve-se exigir cautela dos fiscais desses contratos, do próprio ente administrativo que está contratando e do Tribunal de Contas da União e do Ministério Público para avaliar se não se valeu dessa flexibilização para cometer irregularidade. A mesma coisa na questão trabalhista. A manutenção do emprego é importante e para isso pode ser que seja necessário flexibilizar algumas coisas, como adequar a carga horária e o Estado arcar com isso, mas tem que tomar muito cuidado para isso não justificar uma precarização, uma renúncia de direitos.

 

Como analisa essa questão da flexibilização de direitos?

Acredito que exista a busca por uma garantia, na questão administrava e trabalhista, principalmente de evitar um dano ainda maior, mas tem-se percebido que o governo tem se valido do coronavírus para implementar medidas que já não têm sido aceitas. Na própria questão da prevalência do acordo individual sobre o coletivo, o governo insiste e tenta voltar a prevalência do acordo individual. Outro exemplo que ficou claro é a proposta de campanha do ministro Paulo Guedes sobre a extinção das contribuições ao sistema S. Uma das medidas que o presidente fez reduziu à metade a alíquota dessas contribuições. Ficou claro que há interesse do Estado. Nos outros tributos foi tudo prorrogado, nesse não, houve só a redução, então essa flexibilização pode acabar escondendo uma pretensão do Executivo para fazer prevalecer sua vontade. É preciso tomar cuidado com a implementação, sob a justificava da crise, de medidas impopulares que geram restrições e precarização de direitos.

 

Qual o risco de flexibilizar pagamento de tributos para daqui a três ou quatro meses quando a previsão é de ritmo lento da economia?

Imagino que essas medidas não vão se mostrar satisfatórias ao longo do tempo, porque em alguma hora a conta vai chegar. Quando esses tributos começarem a vencer a tendência é que a situação econômica ainda não tenha sido normalizada, então com a prorrogação por mais três, quatro meses, a tendência é que o contribuinte ainda não tenha a disponibilidade financeira para arcar com eles. Acredito que deve ser avaliada prorrogação ainda maior, com parcelas menores. A postura do Estado tem que ser ainda mais flexível para o contribuinte. O contribuinte ser mais proativo, pleitear o seu direito e não aceitar algumas medidas abusivas tende a ajudar também. A prorrogação é um remédio momentâneo que pode ser útil, mas mais cedo ou mais tarde essa conta chega e a ele pode não se mostrar ser a melhor medida.

/ Alexandra Martins e Roberta Vassallo

Fonte: BR Político

Link da matéria: https://brpolitico.com.br/noticias/brpergunta-estado-gera-inundacao-de-acoes-sobre-pandemia-no-stf/